Parte I: O Ponto de Ruptura
O cheiro de ozônio queimado e fumaça ácida do combustível de fusão era o único ar que restava para o Tenente Kellen Roric. Dentro da cabine apertada do seu BattleMech Valkyrie, o silêncio no canal de comando era tão sufocante quanto a fumaça que entrava pela ventilação quebrada.
A Guarda Leve Davion recuava. Ou melhor, o que restava dela.
Kellen pilotava um Mech de reconhecimento e apoio, o Valkyrie, uma máquina de 30 toneladas que podia pular até 150 metros, um dos pilares da Casa Davion. Mas peso e velocidade pouco importavam quando o inimigo era maior em número e estava entrincheirado como carrapatos.
“Laura,” tentou Kellen, com a voz rouca. Nenhuma resposta.
Ele forçou o Sistema de Rastreamento do Valkyrie. O mapa tático, cheio de interferência, piscava com os símbolos de seus companheiros. Ou com o que restava deles.
O Stinger de Laura, um Mech de reconhecimento leve, tinha sido destruído há segundos, vaporizado por um tiro de canhão automático que rasgou a blindagem do torso. A blindagem de um Mech de 30 toneladas era como papel de seda contra o poder de fogo de um Rifleman. Kellen viu o reator do Stinger explodir, uma flor de fogo que pintou os escombros da capital com um vermelho passageiro, tão vivo quanto a bandeira da Federação dos Sóis.
A perdição deles tinha sido essa retirada ordenada, essa “manobra tática” para proteger os transportes. Havia um erro fatal no plano, um erro que custara a vida de quatro membros de seu pelotão. Agora, só restavam Kellen e o Vindicator do Capitão Tomas, um Mech de combate de 45 toneladas.
“Kellen, as pernas estão falhando,” disse Tomas, com a dor evidente na voz. “A blindagem já não existe. Não vou conseguir. Saia daqui e faça o relatório.”
O Valkyrie de Kellen estava danificado, mas funcional. O Laser Médio no braço esquerdo piscava, mas seu Lançador de Mísseis de Longo Alcance ainda estava carregado.
Kellen pisou no acelerador. Seu Mech se moveu à velocidade máxima de 86 km/h, deslizando sobre o terreno de cascalho. Ele sabia o que o Capitão queria. Recuar, abandonar, sobreviver para honrar o juramento de serviço. Mas cada fibra de seu corpo, cada ano de treinamento na Academia NAIS em Nova Avalon, gritava em protesto. A honra Davion não era medida em vitórias fáceis, mas em sacrifício.
“Não,” respondeu Kellen, ajustando o lançador de mísseis para um alvo cego, um Rifleman inimigo que bombardeava a posição de Tomas.
Um clarão vermelho e furioso vindo de trás varreu a cabine de Kellen, forçando-o a se encolher por um momento. O Vindicator de Tomas, que mal se aguentava em pé, tinha sido atingido. O símbolo de Tomas no mapa piscou e se apagou. Era o fim. Três membros do pelotão tombados.
Kellen freou bruscamente. O BattleMech, com sua pesada blindagem rangendo sob o esforço, quase caiu, mas o giroscópio o manteve estável. A fúria, fria e cortante, varreu o luto. Ele estava sozinho.
Seus sensores se concentraram nos inimigos que avançavam: três Mechs das Forças da Combine Draconis. Um Rifleman de 60 toneladas no centro, apoiado por dois Stingers de reconhecimento de 20 toneladas. Um grupo de combate quase completo, praticamente intacto, determinado a obliterar o último bastião de resistência Davion.
Roric viu o Rifleman levantar o braço direito, o Canhão Automático pronto para terminar o trabalho.
“Estou te vendo, Cobra,” murmurou Kellen, forçando o Laser Médio a mirar no torso do Rifleman. Já não tinha honra a perder. Iria lutar, não para vencer, mas para fazer o inimigo pagar caro. Ele faria valer a morte de seus companheiros.
“Pela Espada da Liberdade!” sussurrou, puxando o gatilho.
Parte II: O Preço da Vingança
A salva de mísseis do Valkyrie atingiu o torso esquerdo do Rifleman. Não foi suficiente para derrubar o gigante de 60 toneladas, mas a explosão concentrada espalhou metal líquido e fumaça que cobriram os sensores do inimigo. O Rifleman, uma plataforma de apoio com blindagem notoriamente fina para seu peso, estremeceu com o impacto, interrompendo o ciclo de tiro de seu canhão.
“Focem-se nos batedores! Eliminem a ameaça leve!” A voz de um dos pilotos Draconis ecoou, distorcida pela interferência, no canal aberto – um erro de inexperiência que Kellen agradeceu.
Os dois Stingers de 20 toneladas avançaram, rápidos como vespas, cercando Kellen de lados opostos. O Valkyrie de Kellen, embora rápido, não conseguia manobrar sob fogo cruzado contra máquinas mais leves.
Kellen acionou os propulsores de salto. Um rugido ensurdecedor irrompeu sob seus pés quando ele projetou o Mech 150 metros no ar. O chão sob ele explodiu onde um feixe de Laser Médio de um dos Stingers tinha atingido.
O pouso foi brusco, quase violento. Kellen usou o ímpeto para girar. O momento no ar permitiu que ele redefinisse o alvo. Ele apontou o Laser Médio para o Stinger da direita.
A prioridade era quebrar o grupo inimigo.
Tum. Tum. Tum. Três disparos rápidos e desesperados.
Os raios rubis do laser atingiram a perna do Stinger. O laser, superaquecido ao ponto de falhar porque Kellen o forçou, cortou a blindagem fina do batedor como um maçarico. O Stinger cambaleou, o piloto lutando contra a falha, mas se manteve em pé.
O rugido do Canhão Automático do Rifleman foi o último som que Kellen esperava ouvir antes de ser atingido. O Rifleman, apesar de sua lentidão e blindagem fraca, era uma ameaça esmagadora em linha reta.
O projétil de grosso calibre do Rifleman atingiu o torso esquerdo do Valkyrie. A cabine de Kellen foi jogada para a frente. O capacete neural estalou, a força do impacto jogando Kellen contra as correias de segurança. O odor metálico do sangue encheu o ar, mas Kellen mal percebeu.
“Danos críticos na blindagem do Torso Esquerdo. Acesso à Estrutura Interna,” sibilou a voz sintética de aviso do Valkyrie, ignorada pela descarga de adrenalina. A perda de blindagem no torso significava que seu Laser Médio no braço esquerdo, que já estava falhando, estava agora perigosamente exposto.
O Stinger danificado, em vez de recuar, avançou, disparando de perto. Kellen contra-atacou, usando seu Valkyrie não como um Mech de apoio, mas como um lutador corpo a corpo.
Ele deu um passo largo e chutou o Stinger cambaleante com força massiva. O impacto balançou o Valkyrie de 30 toneladas e ressoou pela cabine. A blindagem do Stinger (que já estava danificada) não resistiu ao peso concentrado. O Mech batedor, agora sem uma perna e desequilibrado, caiu com um gemido de metal torcido.
A ameaça leve estava fora de combate, mas Kellen mal teve tempo para respirar. O segundo Stinger e o Rifleman estavam se aproximando, o Rifleman agora mirando a traseira vulnerável do Valkyrie.
Kellen fez uma última verificação de seus mísseis restantes. Apenas um punhado de mísseis de longo alcance restava. Não seria suficiente para um ataque decisivo, mas talvez… talvez fosse suficiente para uma distração.
Ele precisava se mover rapidamente. O Rifleman estava perto demais.
Kellen forçou o Valkyrie a se virar, girando o torso para usar a blindagem frontal restante como escudo. Ele olhou para o topo do Rifleman que se aproximava, um ponto no meio do campo de escombros. Ele tinha que chegar perto o suficiente para usar seu laser sem ter que pular e expor sua parte inferior. Kellen respirou fundo, ignorando a dor aguda no ombro deslocado, e empurrou o acelerador para a frente.
Ele só tinha uma bala de prata, e ela teria que acertar em cheio no alvo.
Parte III: A Escolha do Açougueiro
A manobra era insana, suicida, a última jogada que um piloto Davion aprenderia se estivesse encurralado: a Carga Kamikaze.
Kellen ignorou o segundo Stinger, que estava a 50 metros e disparava seu laser em rajadas implacáveis. Ele concentrou toda a força dos atuadores restantes na perna direita em um avanço frenético em direção ao Rifleman.
O piloto do Rifleman, talvez confiante demais em sua blindagem pesada e poder de fogo, hesitou. Em vez de recuar, parou, elevando seus dois braços massivos, com os canhões automáticos prontos para disparar no ponto em que o Valkyrie se estabilizasse.
Mas Kellen não iria se estabilizar.
A menos de cinco metros, a velocidade e a fúria do Valkyrie se transformaram em uma carga. Kellen jogou o corpo de seu BattleMech contra o Rifleman, uma investida de 30 toneladas de puro ódio e metal.
O impacto foi cataclísmico. Kellen sentiu o giroscópio gritar enquanto seu corpo era esmagado contra o assento. O Rifleman, pego de surpresa e incapaz de se estabilizar, caiu para trás com um rugido estrondoso, esmagando o chão em uma nuvem de poeira e detritos.
Kellen não se importou com os danos que sofreu no impacto. Ele já tinha pago o preço.
O Valkyrie estava atolado no peito do Rifleman tombado. Usando a blindagem inimiga como base, Kellen forçou o que restava do Laser Médio a disparar repetidamente. Seu alvo não era o torso, mas a cabine: o centro de controle, o ponto mais vulnerável de qualquer Mech.
Um, dois, três disparos. O laser falhou na quarta vez, mas já era tarde. A energia concentrada, liberada à queima-roupa, penetrou na blindagem da cabeça do Rifleman.
O símbolo do Rifleman em seu visor piscou em vermelho e, depois, se apagou, substituído por um ponto cinza e morto. O Mech parou de se debater.
O segundo Stinger viu a cena. Em vez de avançar para vingar seus companheiros, a máquina batedora hesitou, paralisada pela ferocidade do ataque.
Kellen, com o painel de controle banhado em sangue (o seu, ou do piloto do Rifleman, ele não sabia nem se importava), virou o Valkyrie danificado em direção ao inimigo restante.
“Eu sou Kellen Roric, da Guarda Leve Davion,” ele rosnou no canal aberto. Sua voz estava quebrada e distorcida, mas carregava o peso dos três membros do pelotão tombados. “Eu sou o escolhido do Açougueiro. Saia ou morra.”
O Stinger não precisou ser convencido. Ele se virou e fugiu, gastando todo seu impulso em uma fuga humilhante do campo de batalha. O piloto Dragão preferiu a desonra da fuga à aniquilação certa.
Kellen Roric, o último de seu pelotão, permaneceu de pé sobre o peito esmagado do Rifleman. Seu Valkyrie, uma máquina de 30 toneladas, estava quase totalmente destruído, a blindagem rasgada e o sistema de armas em frangalhos. Mas ele estava de pé, cercado apenas pela fumaça e pelo silêncio, o único som sendo o guincho melancólico de seus dissipadores de calor.
A vitória, quase impossível, era sua. Ele tinha vingado seus companheiros e cumprido seu dever, mesmo que a um custo que só ele sobreviveria para pagar. Agora, ele esperaria pelos transportes, ou pelo próximo grupo inimigo. Ele estava pronto.
Parte IV: Honra e Cinzas
O peso do Valkyrie de Kellen era esmagador, não apenas pelas trinta toneladas de metal, mas pelo fardo da sobrevivência. Seus atuadores gemiam em protesto enquanto ele permanecia sobre o peito achatado do Rifleman inimigo. O Rifleman, uma máquina de 60 toneladas, não passava de uma tumba de ferro frio e distorcido.
O ar na cabine era uma sopa espessa de calor úmido e fumaça ácida. Seus dissipadores de calor trabalhavam freneticamente, mas a temperatura permanecia perigosamente alta—um testemunho de como ele tinha forçado o Laser Médio e os propulsores de salto. Um alarme estrondoso tinha diminuído para um zumbido baixo e intermitente: Danos Estruturais Críticos. Perda de Pressurização.
Kellen não conseguia tirar os olhos do símbolo de status que representava seu Mech. A blindagem, outrora orgulhosamente espessa, estava em pedaços no torso esquerdo, e a estrutura estava exposta. Aquele último impacto do Rifleman quase o tinha desmantelado. Ele tinha tido sorte—a sorte fria e improvável de um condenado.
Ele tentou o canal do pelotão novamente, sabendo que era inútil. “Laura. Tomas. Relatem.”
Apenas interferência. O silêncio era a resposta mais pesada. A fúria da batalha o tinha mantido em movimento, concentrado na única tarefa de sobreviver e vingar. Agora, desceu o luto; o luto de um homem sozinho em um campo de batalha varrido e silencioso. Eles eram quatro na Guarda Leve Davion que tinham pousado. Agora ele era o único remanescente. O último.
Kellen desligou o monitor de comunicação e inclinou a cabeça para trás, sentindo o suor misturado com sangue escorrer por seu rosto e pelo capacete neural. O trauma em seu ombro deslocado (resultado do impacto da carga) mal se registrava através do choque.
Ele olhou para o horizonte, para os restos da cidade em chamas que tinham se tornado o túmulo de seus amigos.
O juramento era simples: lutar pela Federação dos Sóis. Mas a honra Davion não era apenas lealdade à bandeira. Era a lealdade àqueles ao seu lado. Ele tinha falhado em protegê-los, mas tinha feito a última coisa que podia: garantir que eles não morressem em vão. O Rifleman e os Stingers Dragão seriam destroços que contariam a história do pelotão que se recusou a ceder.
Lentamente, Kellen começou a mover seu Valkyrie. Com um rugido de metal esticado, a máquina se afastou dos destroços do Rifleman. Ele deu um passo, depois outro, cada movimento pesado e estudado, como se estivesse atravessando areia movediça. Ele precisava sair daquele cemitério e encontrar o ponto de encontro.
Ele parou o Mech em um pequeno monte de escombros, o Valkyrie servindo agora como uma estátua sombria, um farol de determinação. Ele estava lá para fazer o relatório. Ele cumpriria seu dever, como o Capitão Tomas tinha ordenado.
Ele forçou o rádio novamente, desta vez para a frequência regimental, ignorando o crepitar da interferência. “Aqui é o Tenente Roric. Último membro do Pelotão Kilo. Missão cumprida. Aguardando transporte na zona Delta Sete. Temos destroços. Eu tenho… três baixas confirmadas. Repito, três baixas confirmadas. Enviem médicos.”
O crepitar durou um momento antes que uma resposta distante e cheia de interferência voltasse, a voz perturbada, mas reconhecível. O som da esperança, ou pelo menos, do fim da solidão.
Kellen Roric apertou os olhos, mas não chorou. Ele tinha a vitória. E tinha cinzas. E isso era tudo o que restava.
